A urgência de vislumbrar um mundo sem polícia
![Uma pessoa usando um vestido branco cuja saia é feita de fitas, cada uma com um nome escrito, inclina-se para trás com os olhos fechados. Ela está na grama, com uma faixa do Black Lives Matter [Vidas Negras Importam] no chão ao seu lado e um círculo de bateristas e espectadores ao redor.](https://www.sapiens.org/app/uploads/2023/07/01_Say-Her-Name-rally-1024x691.jpg)
Jeri Hutton Green e sua mãe, Lillian Herndon, falavam por telefone todos os dias. Então, quando Green recebeu uma mensagem de texto do número de sua mãe em 10 de abril de 2020, dizendo que ela estava de férias com seu namorado, Roderick “Erik” Griffin, Green sabia que algo estava errado. Embora não fosse incomum que sua mãe viajasse, Herndon não costumava se comunicar com a filha por mensagem de texto.
Nos dias que se seguiram—durante as incertas primeiras semanas da pandemia da COVID-19—Herndon não atendeu ao telefone. Green não conseguia se livrar de suas suspeitas de que algo terrível havia acontecido.
Green morava em Annapolis, Maryland, e não era tão fácil para ela ir a Baltimore, onde morava sua mãe. Quando finalmente chegou à casa da mãe, ela bateu na porta. Não houve resposta.
Então, ela entrou em contato com a polícia da cidade de Baltimore para fazer uma verificação preventiva. Eles se recusaram, ela me disse, insistindo que Green precisava entrar na casa de sua mãe pessoalmente. Depois de entrar em contato com a polícia da cidade de Baltimore mais quatro vezes e obter pouca resposta, Green iniciou sua própria investigação de desaparecimento. Ela coletou números de telefone, nomes e endereços das pessoas que poderiam ter entrado em contato com Herndon em 10 de abril, o último dia em que ela foi vista.
Embora sua intuição lhe dissesse que algo estava errado, nada poderia ter preparado Green para o que aconteceu em seguida: em 21 de abril, após várias tentativas de revistar a casa, ela e seu irmão descobriram o corpo da mãe em sua casa.
Naquele mesmo dia, Green notou um homem passando pela cena do crime no carro de sua mãe, que Green havia dado como desaparecido. Quando a polícia finalmente procurou o carro—somente depois que o corpo de Herndon foi descoberto—encontraram Griffin dirigindo o carro.
Ele foi finalmente preso e confessou ter assassinado Herndon.
De acordo com declarações feitas pelo advogado de defesa de Griffin em setembro de 2022, Griffin entrou em uma discussão com Herndon quando ela tentou terminar o relacionamento e pediu que ele saísse de sua casa. Green relatou que ele disse que preferia morrer na cadeia a ficar sem teto, então ele a estrangulou. Antes do julgamento, Griffin explicou à polícia que, naquele momento, não via mais Herndon como um ser humano. Depois de amarrar com força uma bandana em seu rosto, ele amarrou suas mãos e pés e a colocou no armário de seu quarto. Em seguida, ele enviou a mensagem de texto suspeita para Green.
Ouvi a história de Green pela primeira vez durante um treinamento para defensores de sobreviventes de violência por parceiro íntimo em março de 2021. Seu cabelo curto, sua pele marrom e seu sorriso largo me fizeram lembrar das mulheres que conheci e amei na Carolina do Sul, onde cresci. Fiquei impressionada com sua segurança; era óbvio que ela havia contado a história várias vezes para quem quisesse ouvir. Green estava determinada a conseguir justiça para sua mãe.
Ouça aqui para saber mais sobre a pesquisa de Tynes: “Faço isso por você, mãe.”
Senti sua dor e seu amor intenso por sua mãe. Como uma mulher negra que sobreviveu à violência interpessoal, sei o que é procurar apoio sem sucesso. E como antropóloga que estuda a violência patriarcal e o racismo contra pessoas negras em Baltimore e outros lugares, eu tive dificuldade em imaginar como seria a justiça no atual sistema de punição criminal dos Estados Unidos. O patriarcado e a supremacia branca moldam tanto a violência de gênero quanto a violência policial. Construído sobre as bases da escravidão e do genocídio indígena, o sistema de punição criminal não está quebrado; ele foi projetado para ser injusto.
Levando todas essas coisas em consideração, não pude deixar de me perguntar: será que a justiça virá para Green ou para qualquer pessoa negra? E se isso acontecer, como?
Na cidade de Baltimore, 2020 foi o ano mais letal já registrado para as mulheres, com um total de 49 mulheres assassinadas—muitas das quais eram negras. Em um momento em que todo mundo eram aconselhado a se abrigar para reduzir a disseminação do vírus mortal e incapacitante da COVID-19, muitas mulheres e meninas negras em todo o país foram forçadas a viver próximas a outra força perigosa: a violência patriarcal.
Herndon estava entre as mais de 19 mulheres e meninas negras que foram mortas em Baltimore naquele ano.
Uma pessoa representante do departamento de polícia da cidade disse que o aumento da violência entre parceiros íntimos fazia parte das razões por trás do aumento dos assassinatos de mulheres. Naquele verão, protestos em todo o país pediram que o mundo “proteja as mulheres negras” em resposta ao assassinato sancionado pelo Estado de Breonna Taylor em Louisville, no estado de Kentucky, em março de 2020. Mas as experiências de muitas mulheres negras com a violência patriarcal não foram recebidas com a mesma urgência.
A história de Green, como fiquei sabendo quando a entrevistei mais tarde no âmbito de minha pesquisa de doutorado, reflete as experiências de tantas mulheres negras que reivindicam justiça e proteção contra a violência. Em vez de receber apoio real do Estado ou de nossas comunidades, muitas vezes nos pedem mais trabalho. Pedem-nos que tornemos nossa dor e o abuso que sofremos visíveis e digeríveis para as outras pessoas, ou pedem-nos que façamos o trabalho de minimizar nossa dor para que possamos continuar a servir às outras pessoas.
Green me contou como tentou incansavelmente conseguir “justiça” para sua mãe através do sistema. Ela se mudou de Annapolis para Baltimore para comparecer a todas as audiências. Ela assumiu os negócios de sua mãe. Lhe designaram alguns defensores de vítimas de homicídio os quais não lhe deram nenhum apoio emocional ou jurídico. Ela teve que lutar para receber serviços adequados de saúde mental enquanto sua vida desmoronava. As únicas pessoas que apoiaram Green de forma consistente eram suas primas negras.
No final, Griffin foi condenado a 40 anos (com 15 anos de regime aberto), com cinco anos de liberdade condicional supervisionada por homicídio em segundo grau. Isso foi “justiça”, conforme definido pelo sistema de punição criminal.
Como você deve imaginar, isso não foi suficiente para Green. Mas que quantidade de anos seria suficiente? E isso seria realmente suficiente para honrar a memória da sua mãe, a qual não viveu para comemorar seu 76º aniversário?
Tendo crescido como uma garota negra no sul dos Estados Unidos, aprendi desde cedo que a polícia era inimiga da minha comunidade, especialmente dos homens e meninos negros. Ouvi a minha avó contar as histórias das jovens negras que ela conhecia que, ao tentarem denunciar os estupros que sofreram, foram tratadas como lixo.
Quando fui abusada sexualmente na igreja e na escola, membros da minha família e colegas da igreja me disseram para não denunciar porque “isso arruinaria vidas”. Quando sofri abuso físico e sexual em meus relacionamentos adultos, eu sabia que não poderia recorrer às autoridades para me ajudar.
Eu não queria arruinar a vida de outro homem negro ao envolver a polícia. Tampouco queria passar pelo humilhante processo de denúncia de violência praticada por parceiro íntimo.
Esses processos exigem que a pessoa violentada forneça “evidências” de sua dor para ser acreditada. As pessoas sobreviventes são frequentemente questionadas sobre por que não deixaram o agressor mais cedo. Precisamos reviver a experiência traumática várias vezes quando relatamos o que aconteceu. Nossas palavras, aparências e vidas são analisadas para justificar o abuso que sofremos.
O sistema de punição criminal não está quebrado; ele foi projetado para ser injusto.
As mulheres negras que denunciam a violência às autoridades geralmente enfrentam a camada adicional de misoginia contra pessoas negras. Essa foi a minha experiência. Na faculdade, denunciei uma agressão de um ex-parceiro íntimo à minha universidade. Embora eu quisesse apenas ter acesso a acompanhamento psicológico, meu caso foi levado ao Conselho de Conduta Estudantil sem meu conhecimento ou consentimento. A audiência que determinou meu futuro acadêmico aconteceu na minha ausência. Meu ex-parceiro compareceu à audiência, alegando que eu havia inventado a história porque estava chateada por não estarmos mais juntos. Ele me retratou como uma “mulher negra raivosa” e, na mente do Conselho de Conduta, eu não era mais uma vítima de abuso. Em vez disso, eles trataram o caso como se eu fosse a agressora. No final, eu fui sancionada. Ele recebeu uma advertência e a promessa de que se eu “voltasse a incomodá-lo”, seria suspensa ou expulsa.
Depois de cada uma dessas experiências de abuso, tudo o que eu queria era ter acesso a recursos que restaurassem meu senso de integridade e segurança. Eu queria sentir que meu corpo era meu. Mas um sistema projetado para tratar os corpos como propriedade nunca será capaz de oferecer a segurança e a cura que as pessoas sobreviventes da violência precisam.
A história de Green e Herndon me mostrou mais uma vez que a justiça não virá por meio da busca de punição em instituições com históricos violentos. Fazer isso, muitas vezes, só prejudica ainda mais as pessoas sobreviventes—agravando sua dor e seu sofrimento.
Então, quais são as alternativas?
Em primeiro lugar, como pessoas ativistas e acadêmicas feministas negras e queer têm repetido há muito tempo, precisamos entender que a violência contra mulheres, meninas, pessoas queer e trans negras é o resultado direto do patriarcado e da anti-negritude. O patriarcado sob a supremacia branca e o capitalismo dita que a única maneira de consolidar o poder e distribuir a propriedade é dominando as pessoas consideradas na sociedade em geral como fracas ou inferiores. O patriarcado dentro e fora das comunidades negras cria um ambiente em que o abuso de mulheres negras, crianças e pessoas queer e trans é aceito, incentivado e, consequentemente, invisibilizado. A violência íntima e familiar é tratada como algo que as mulheres e outras pessoas vulnerabilizadas merecem no final das contas.
Os mesmos sistemas, então, dizem às pessoas para buscarem salvação e proteção no sistema de punição criminal—a mesma fonte que causa o sofrimento. Mas como podemos esperar que os mesmos sistemas que exercem a morte como poder nos façam sentir seguras e seguros?
Nenhuma reforma da punição criminal criará as condições de segurança de que pessoas negras precisam para enfrentar a violência em nossas comunidades. Se nos mantivermos fiéis ao roteiro da reforma, estaremos sempre trabalhando contra a lógica do Estado de lidar com a morte, que diz às mulheres negras que devemos sacrificar nosso bem-estar para que os homens negros tenham poder. Como argumentam as organizadoras políticas Mariame Kaba e Andrea Ritchie em No More Police [Chega de Polícia], somente em um mundo abolicionista—um mundo sem policiamento e prisões (e as ferramentas de sexismo, racismo, classismo e capacitismo que os possibilitam)—é que finalmente teremos espaço para viver.
Isso também significa que o enfrentamento da violência contra mulheres negras, crianças, pessoas queer e trans começa com cada um de nós, aqui e agora. Comunidades de todo o mundo já estão experimentando a abolição, criando pequenos mundos sem polícia. É hora de ouvirmos e aprendermos com elas. O futuro de nossas comunidades depende disso.
No mundo abolicionista que imagino, Herndon teria comemorado seu 76º aniversário este ano. Talvez ela e Griffin tivessem se separado porque ele teria tido a rede de segurança social de que precisava. Seu senso de identidade e integridade não estariam ligados à dominação e à violência. Nesse mundo, o assassinato de Herndon teria sido impensável.