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Essay / Reflections

As raízes emaranhadas da corrupção na África do Sul atual

Uma jurista convertida em antropóloga conecta o passado colonial e do apartheid da África do Sul à corrupção que ela testemunha enquanto acompanha agentes de liberdade condicional.
Três pessoas vistas através do para-brisa de um carro com um painel iluminado por luzes laranja, vermelhas, verdes e azuis caminham por uma rua à noite.

Agentes da lei patrulham Bonteheuwel, um município na periferia da Cidade do Cabo, na África do Sul.

Rodger Bosch/AFP/Getty Images

Estou sentada na parte de trás de uma Toyota Hilux do Departamento de Correções, com o traseiro dormente depois de percorrer as ruas esburacadas de Bonteheuwel, um dos municípios vizinhos da Cidade do Cabo, conhecido por seus altos índices de criminalidade e conflitos entre gangues.

Do banco da frente, Mbiko, membro do departamento, me entrega uma sacola do McDonalds com um sanduíche Quarter Pounder e batatas fritas. [1] Todos os nomes mencionados neste artigo são pseudônimos para proteger a identidade das pessoas. Mbiko é funcionária da Community Corrections, ou CommCorr, o braço do Departamento de Correções que supervisiona a liberdade condicional, o serviço comunitário e a liberdade assistida.

Está escuro e frio lá fora, e a comida quente é bem-vinda após um dia acompanhando-a dentro e fora das casas das pessoas, observando-a fazer cumprir as condições da liberdade condicional.

“Dinheiro para refrigerante”, diz Mbiko, piscando o olho, carinhosamente chamada de “Bibi” no escritório da CommCorr na Cidade do Cabo. Ela se refere às notas amassadas de cor rosa de 50 Rand que usou para pagar a refeição. No início do dia, homens na rua chamaram nossa bakkie (caminhonete) e entregaram dinheiro pela janela.

“A gente não pode chamar isso de suborno”, disse ela. “Como pode ser suborno quando as pessoas vêm ao escritório e pedem que eu lhes dê dinheiro para o transporte para voltar para casa?” Para Bibi, isso era uma troca. O dinheiro saiu de sua carteira quando ela estava no escritório da CommCorr e voltou quando ela dirigia pelas ruas de Bonteheuwel. Não precisava vir da mesma pessoa.

Eu tinha acabado de testemunhar a infame corrupção dos funcionários públicos na África do Sul? Ela tinha aceitado um suborno bem na minha frente, justificado isso e me comprado uma refeição com o dinheiro?

Passei o último ano visitando centros correcionais e escritórios da CommCorr em meu país natal, a África do Sul, como parte da pesquisa para meu doutorado em antropologia, que comecei depois de deixar minha primeira carreira na área jurídica. Eu estava aprendendo que muito do que me ensinaram sobre a diferença entre o certo e o errado não se aplicava ao mundo fora dos estatutos e da jurisprudência.

Em um comício político, atrás de um homem branco vestindo uma camisa azul de colarinho, uma pessoa negra está em pé segurando um cartaz azul com letras brancas que diz “Pare com a corrupção”.

Nas eleições nacionais de 2024 na África do Sul, o governo do ANC perdeu a maioria dos votos pela primeira vez em 30 anos devido à percepção de corrupção.

Darren Stewart/Gallo Images/Getty Images

Corrupção, com C maiúsculo, é uma palavra pesada no discurso político sul-africano. Para muitas pessoas sul-africanas, ela transmite profundos sentimentos de traição. Desde que o ex-presidente Jacob Zuma, que ocupou o cargo por nove anos, foi acusado de corrupção, lavagem de dinheiro e fraude, o governo passou a ser associado a atores corruptos. Os escândalos de corrupção, incluindo as crises contínuas relacionadas aos apagões, moldam a forma com que muitos sul-africanos pensam sobre seu governo. Apesar dos esforços para lidar com essa percepção por parte do sucessor de Zuma, Cyril Ramaphosa (ele próprio associado a percepções de corrupção), um protesto impactante marcou o resultado das eleições nacionais de 2024: pela primeira vez desde o início das eleições pós-apartheid em 1994, o Congresso Nacional Africano (ANC)—o partido político de Nelson Mandela —perdeu a maioria dos votos.

Mas o que vi acontecer entre Bibi e os moradores de Bonteheuwel não se parecia em nada com as notícias de corrupção política que dominam o ciclo de notícias sul-africanas. O que testemunhei parecia sobrevivência: grupos de pessoas que foram divididas pelas classificações raciais do apartheid e, mais tarde, pelos rótulos do sistema de justiça criminal como “agressores” e “agentes de liberdade condicional”, dando e recebendo para suportar o presente profundamente desigual.

PARTE DO QUE TORNA o presente da África do Sul tão complexo é a forma como diferentes governos brancos atribuíram às pessoas não brancas uma hierarquia de categorias raciais. Estas classificações impostas afetaram a expropriação e relocalização de terras, a exploração laboral, a segregação racial extrema, a representação política e muito mais.

Uma fotografia em preto e branco mostra uma pessoa negra sentada em um banco de parque, com as pernas cruzadas, lendo. No banco, letras estampadas dizem: “Somente europeus”.

A maioria dos serviços públicos e do apoio estatal era reservada às pessoas classificadas como “europeias” (brancas) pelos governos coloniais e do apartheid.

Bettman/Getty Images

Por exemplo, em 1950, o governo do apartheid definiu legalmente os africanos negros como “bantos” ou “nativos” e os dividiu ainda mais em comunidades tribais artificiais, definidas pelo Estado. Constituindo a maioria da população, os africanos negros foram colocados no degrau mais baixo de uma hierarquia racial baseada nos princípios do racismo científico. Um pouco acima dessa categoria estavam os descendentes dos povos Khoe, San e Malay, que foram legalmente definidos como “de cor”. A maioria desse grupo fala africâner, e a animosidade e a desconfiança persistem entre as pessoas “de cor” e africanas negras. Uma minoria da população branca (principalmente de dois grupos étnicos: falantes de africâner e falantes de inglês) se beneficiou do apartheid e recebeu mais privilégios e oportunidades. Mais tarde, “indiano” foi adicionado para abranger pessoas de ascendência sul-asiática.

Essas divisões raciais arbitrárias ainda afetam a vida dos sul-africanos. Bibi é amaXhosa e teria sido considerada bantu pelo governo do apartheid. A comunidade pela qual passamos em Bonteheuwel é definida como “de cor”.

Antes de iniciar meu doutorado em antropologia na Universidade do Cabo Ocidental, trabalhei como pesquisadora jurídica na África do Sul. Minha formação jurídica me ensinou que existe uma linha divisória entre ações que são “boas” e aquelas que são “más” e merecem punição. Qualquer pessoa que cometesse qualquer ato de corrupção, grande ou pequeno, era definida como má pela lei.

O que essas categorias binárias obscureciam tornou-se complexo e ambíguo quando eu o vi através das lentes da antropologia. Comecei a me perguntar como a história da conquista colonial moldou a corrupção do governo atual.

Em partes da África colonizadas pelas forças britânicas, principalmente nos séculos XIX e XX, os administradores coloniais mantiveram intactas as formas tradicionais de liderança, desde que esses líderes servissem aos interesses britânicos. Quando os chefes amaXhosa, na região que hoje é o Cabo Oriental, resistiram à invasão britânica de suas terras e à captura de seu gado, foram assassinados ou presos.

Um desses chefes foi Jongumsobomvu Maqoma, que liderou muitas campanhas e lutou contra o governador do Cabo, Harry Smith, no início da década de 1850. O conflito começou quando Smith culpou os chefes amaXhosa pela agitação na área—agitação essa causada, na verdade, por pessoas deslocadas que foram forçadas a viver em condições de superlotação ao longo do rio Kei. Embora Maqoma e outros tenham liderado uma longa resistência a partir das montanhas Waterkloof e Amatole, os britânicos simplesmente tinham mais forças. Maqoma acabou preso. Quando foi libertado, encontrou seu povo disperso, trabalhando em fazendas europeias que passaram a ocupar sua antiga propriedade.

Um mapa ilustra diferentes áreas da África Austral com as cores branco, laranja, amarelo, verde e vermelho.

A Lei das Terras Indígenas de 1913 privou todas as populações indígenas sul-africanas dos direitos sobre os seus territórios ancestrais e impediu-as de possuir quaisquer terras, exceto dentro de pequenas reservas indígenas. Estas viriam mais tarde a tornar-se as “Pátrias Independentes” sob o regime do apartheid, nas quais pessoas sul-africanas negras foram ainda mais privadas da sua cidadania.

Uma vez que todas as terras e povos do Cabo estavam dentro da colônia britânica, os britânicos passaram a perturbar o antigo poder dos chefes, instalando chefes fantoches que eram pagos pelo Estado. Enquanto antes os chefes governavam apenas com o consentimento da comunidade, aqueles colocados no poder pelos britânicos respondiam ao seu salário e não ao seu povo. Esse sistema formaria a base do Departamento de Administração e Desenvolvimento Bantu do estado do apartheid, no qual o governo criou 10 “bantustões” organizados por identidades pseudoétnicas—quatro dos quais se tornaram estados tribais nominalmente independentes dentro da África do Sul, todos com líderes leais ao governo branco. Esses líderes tinham imenso controle sobre populações vulneráveis que haviam sido removidas de suas terras originais. Entre 1960 e 1982, mais de 3,5 milhões de pessoas foram realocadas.

NAQUELE DIA COM BIBI e Cagwe, o homem que dirigia a Hilux, eu queria aprender como eles realizavam uma tarefa chamada “monitoramento”. As pessoas que eles monitoravam, chamadas de “clientes” na linguagem do departamento, haviam sido libertadas da prisão em liberdade condicional e estavam em prisão domiciliar. Bibi e Cagwe iam à casa de cada cliente e confirmavam se a pessoa estava lá. Se alguém estivesse ausente, o cliente poderia ser repreendido. Se alguém estivesse ausente muitas vezes, poderia ser enviado de volta ao centro correcional.

Em nossa viagem por Bonteheuwel, paramos em uma casa de tijolos brancos com grades nas janelas. Lá dentro, conhecemos um jovem chamado Mitchell que morava com sua mãe. Bibi claramente tinha uma longa história com ele, porque sua mãe a chamou para dentro para reclamar:

“Ele fica saindo à noite, vendendo drogas e tentando ser um gangster como o pai dele.”

Na segunda-feira seguinte, Bibi mandou Mitchell de volta para o Centro Correcional de Pollsmoor. Ele perdeu a liberdade condicional. Essas eram as consequências.

O governo do apartheid criou divisões raciais arbitrárias que ainda afetam a vida dos sul-africanos.

Os homens que vi entregando dinheiro pela janela da caminhonete estavam fora de casa, em vez de cumprirem prisão domiciliar. Eles precisavam ficar do lado bom de Bibi, ou acabariam voltando para dentro.

O dinheiro representava gratidão. Do lugar onde Bibi estava sentada, no banco do passageiro da frente, ela sabia que, para o pesquisador no banco de trás, isso pareceria um suborno dos homens que não estavam cumprindo a prisão domiciliar. Mas ela sabia que suas vidas e situações eram mais complicadas do que o preto e branco de suas condições de liberdade condicional.

O GOVERNO DE COALIZÃO de 1994, chamado de Governo de Unidade Nacional (GNU), liderado pelo ANC, herdou um sistema fragmentado de chefes e vereadores que, ao longo de muitos anos de domínio branco, produziram uma governança profundamente corrupta. Nos anos desde a eleição de 1994, essa mancha de ineficiência, suborno e ganância se instalou sobre o governo do ANC.

Na África do Sul, de acordo com a rede de pesquisa sem fins lucrativos Afrobarometer: “A maioria dos cidadãos diz que as pessoas comuns correm o risco de retaliação se se manifestarem contra a corrupção, e apenas alguns acreditam que as autoridades tomarão medidas em resposta às denúncias de corrupção”. Junto com o desemprego e a eletricidade intermitente, a corrupção estava entre as três principais preocupações da população sul-africana à medida que se aproximavam as eleições nacionais de 2024. Mas essa preocupação não se limita aos políticos de alto escalão; ela se estende à forma como os sul-africanos veem a polícia e os funcionários públicos.

Onde isso deixa Bibi, que me pagou o jantar com dinheiro que recebeu em violação à política do departamento?

O dia que passei com ela em Bonteheuwel era o último dela. Uma das maneiras pelas quais o departamento tentava reprimir a corrupção era transferindo as pessoas regularmente. Não por causa de suas trocas de dinheiro, mas devido a essa prática padrão, ela foi transferida para uma função diferente dentro da CommCorr. Ela ficou mais do que aliviada por deixar aquela comunidade para trás e assumir uma função mais administrativa. Em cada parada que fazíamos, ela dizia aos clientes e suas famílias que alguém novo os visitaria na semana seguinte. Eles ficavam preocupados com quem a substituiria.

Um braço em silhueta pode ser visto através da janela de um prédio de tijolos banhado por uma luz alaranjada.

Um morador de Bonteheuwel espreita pela janela enquanto um agente patrulha o bairro.

Rodger Bosch/AFP/Getty Images

Uma mulher, enquanto fritava tomates e bacon enquanto conversava com Bibi, disse: “Você trata as pessoas ‘de cor’ com respeito. Os outros não fazem isso.”

As tensões entre as pessoas definidas como “de cor” e aqueles que são amaXhosa, como Bibi, são o tipo de legado obviamente associado ao apartheid.

O papel do apartheid é menos conhecido na corrupção dos sistemas de governo que a minoria branca vem usando em seu benefício há 40 anos. Durante o apartheid, o governo era uma fonte confiável de emprego para os brancos e fornecia muitos serviços sociais. Quando, na década de 1980, a maré política começou a favorecer os combatentes da resistência negra, os líderes governamentais brancos privatizaram várias funções do Estado. Eles deram contratos a empresas de propriedade de brancos para assumir os serviços administrados pelo governo, destruindo os empregos públicos. O sistema de governo foi corrompido pelas elites brancas à medida que perdiam seu controle sobre o poder.

A grande Corrupção que vemos ocorrendo agora, com as elites enchendo os bolsos e prestando pouca atenção ao povo, é uma continuação dos chefes fantoches usados para governar os amaXhosa e outros grupos africanos negros. É também uma continuação da drenagem em massa de fundos e serviços governamentais para o setor privado. Poucos recursos restam para Bibi e seus clientes sobreviverem—sem um pouco de corrupção por conta própria.

Quando penso no último dia de monitoramento de Bibi, um homem se destaca. Ele e sua esposa moravam em um barraco encostado na pequena casa de tijolos de outra família. Ele havia sido enviado para a prisão por agressão sexual a uma criança. Sua esposa permaneceu com ele e o apoiou agora que ele estava em liberdade condicional. Ela respeitava e apreciava Bibi pela forma como ela tratava seu marido—como uma pessoa. Ele veio ao escritório da CommCorr alguns dias depois (uma exigência de sua liberdade condicional) e aproveitou a oportunidade para deixar uma torta de limão com merengue que sua esposa havia feito para Bibi.

Smokkel,” ela disse, antes de me oferecer uma fatia. [2] Smokkel significa “contrabandear” em africâner e é uma gíria usada neste contexto para se referir a mercadorias ilícitas, como drogas, armas e celulares, trazidas para o centro correcional. Ela gostava de me provocar sobre todas essas supostas violações da política do departamento que eu estava testemunhando.

Nicole van Zyl é antropóloga jurídica e estudiosa da descolonização. Ela pesquisa a relação entre encarceramento e opressão racial na África do Sul pós-apartheid. Ela atua como diretora assistente de estudos de pós-graduação na Faculdade de Direito da UCLA.

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