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Essay / Cultural Relativity

Encontrar pegadas deixadas no início dos tempos

Na Amazônia brasileira, uma arqueóloga com formação universitária e o povo indígena Wajãpi entendem as marcas do passado de forma diferente—mas sua parceria rende frutos para ambos.
Em uma estrutura de madeira sem paredes, três pessoas vestindo tangas e sem camisa e dois indivíduos vestindo camisetas cercam e apontam para pontos em um grande mapa marrom e verde.

Na Terra Indígena Wajãpi, no Brasil, Roseno Wajãpi (à direita) mapeia lugares de memórias com outros pesquisadores Wajãpi e o mais velho Teju Wajãpi (centro).

Mariana Petry Cabral

PEGADAS DA TERRA RECÉM-NASCIDA

Sentados em um tronco, na sombra sempre presente da floresta amazônica, Roseno Wajãpi e eu dividimos pedaços de beiju [pão de mandioca] e pedaços de peixe defumado. Ele me contou sobre o início dos tempos.

A crosta terrestre era recente, ainda em formação. As pedras ainda não eram sólidas. O Herói Criador Janejarã caminhava entre as aldeias e sentou-se para descansar em alguns pontos. As rochas endureceram, preservando seus passos e a marca de suas nádegas. Como muitos membros de sua comunidade, o povo indígena Wajãpi, Roseno consegue reconhecer essas marcas de Janejarã ainda presentes na paisagem.

Mais cedo naquele dia, eu havia notado alguns das pegadas do Herói Criador à beira do rio, mas interpretei os sulcos rasos e longos de forma diferente. Enquanto arqueóloga, presumi que os sulcos lisos eram provenientes de pessoas do passado que moeram pedras contra uma superfície rochosa para fazer machados de pedra.

Os Wajãpi haviam me convidado para mapear sítios arqueológicos em seu território. Eu estava animada. Era a primeira vez que uma arqueóloga com formação universitária trabalharia na Terra Indígena Wajãpi, que abrange 1,5 milhão de acres de reservas naturais no estado do Amapá, no extremo norte do Brasil.

Porém, durante minha primeira visita, nosso entendimento diferente sobre as rochas sulcadas me pegou de surpresa. Os Wajãpi já sabiam de meus “achados arqueológicos”—as pegadas do Herói Criador desde o início dos tempos. O que meu conhecimento arqueológico poderia oferecer a uma sabedoria cosmológica tão vasta?

Uma fotografia em close-up mostra um conjunto de rochas cinzentas com linhas gravadas nelas.

O povo Wajãpi reconhece sulcos como esses como pegadas do Herói Criador desde o início dos tempos.

Mariana Petry Cabral

Hoje, 15 anos depois daquela primeira tentativa de troca intercultural, os Wajãpi e eu ainda estamos colaborando. Acontece que meu conjunto de habilidades ajuda a mapear lugares e histórias que são importantes nas tradições orais dos Wajãpi. Isso ajuda na gestão da terra e na transmissão de conhecimento dos mais velhos para os mais jovens. Juntos, desenvolvemos um programa de pesquisa que une ciência arqueológica e conhecimento Wajãpi.

Nos últimos anos, discursos políticos de ódio ganharam força no Brasil, alimentados por políticos de extrema direita que colocam em risco a autodeterminação indígena e os direitos à terra. Nossa pesquisa colaborativa ajuda a fomentar os laços intergeracionais dentro da comunidade—essenciais para a preservação e o empoderamento dos povos indígenas no Brasil.

PRIMEIRA VIAGEM AO TERRITÓRIO WAJÃPI

No Brasil, 1,7 milhão de pessoas indígenas compõem mais de 260 grupos étnicos e falam cerca de 160 idiomas. Os Wajãpi contam com 1.600 membros. Eles são os únicos falantes do Wajãpi, que pertence à família Tupi, um grande grupo de línguas relacionadas nativas da América do Sul.

Enquanto arqueóloga com formação universitária, aprendi que os povos indígenas habitam a região amazônica do Amapá há pelo menos 6.000 anos. No entanto, as provas históricas sugerem que os Wajãpi chegaram mais tarde; nos anos 1700, eles migraram da área do Xingu, no sul da Amazônia, para escapar da expansão dos colonizadores.

Sete dias após minha primeira viagem ao território Wajãpi em 2009, estávamos atravessando o rio Inipuku, usando uma árvore caída como ponte. Antes de subir no tronco, avistei as rochas sulcadas, um elemento arqueológico comum que já havia visto várias vezes durante minha carreira.

Árvores derrubadas atravessam um corpo de água verde e turva. Árvores verdes estão alinhadas ao fundo.

As árvores caídas servem como pontes para atravessar o rio Inipuku.

Mariana Petry Cabral

Em fila única, várias pessoas caminham por uma floresta densa.

As trilhas conectam as aldeias dentro da Terra Indígena Wajãpi.

Mariana Petry Cabral

Lá estava eu: toda animada, tirando fotos, fazendo anotações.

Enquanto o grupo seguia em frente, nem pensei em perguntar aos meus parceiros Wajãpi sobre os sulcos.

Estávamos indo para uma das aldeias mais distantes do território. Depois de percorrer cerca de 30 milhas, ainda tínhamos mais 20 para percorrer, mais três dias de caminhada sob o dossel da úmida floresta amazônica. No final da jornada, percorremos quase 100 milhas, quase a distância da cidade de Nova York até Filadélfia.

Ao longo da trilha, Felipe Garcia—um historiador que já havia trabalhado previamente com os Wajãpi—, alertou-me gentilmente sobre minha falta de atenção ao conhecimento Wajãpi. Felipe havia perguntado ao nosso guia Roseno sobre os sulcos e me disse para fazer o mesmo.

Cerca de três horas depois, quando paramos para descansar, perguntei a ele.

Roseno explicou como os sulcos se formaram nos primórdios da Terra, quando as pedras ainda eram macias e Janejarã caminhava sobre elas.

Assim como uma explicação arqueológica, seu relato conectava os vestígios materiais aos eventos que os formaram. A história de Roseno transmitia hipóteses que ele havia aprendido com seus pais e avós. A história que eu contava sobre os sulcos refletia diferentes suposições que eu havia aprendido com meus professores e colegas mais experientes.

Ambos estávamos dando sentido às marcas materiais do passado, criando explicações com base em nossos ensinamentos e experiências. Ambos nos baseávamos em sistemas robustos de conhecimento compartilhados pelos nossos mais velhos. Percebi que eu não era a única pessoa capaz de tirar conclusões sobre elementos arqueológicos. Agora vejo tanto os pesquisadores Wajãpi quanto eu mesma como pessoas arqueólogas. Apenas partimos de diferentes contextos.

MARCAS DO HERÓI CRIADOR

Nos dias que se seguiram, Roseno compartilhou mais sobre o Herói Criador. Janejarã fornecia às pessoas ferramentas, comida, tudo. Por fim, cansado das reclamações e pedidos dos humanos, ele deixou a Terra para viver no céu.

Além dos sulcos nas rochas, suas pegadas, o Herói Criador deixou outras marcas. Os Wajãpi reconhecem as áreas de bambu na floresta e as plantas que crescem nos leitos das rochas como os antigos cultivos de Janejarã. A habilidade da onça de escalar e pular das árvores também vem de Janejarã: o herói convidou todos a experimentar essas manobras no início dos tempos, mas somente as onças aceitaram. Se os humanos tivessem aceitado o convite, nós também teríamos habilidades arbóreas.

Uma onça grande com manchas laranja e pretas salta sobre arbustos verdes e exuberantes.

Os Wajãpi entendem que o Herói Criador ensinou as onças a escalar e saltar durante os primeiros dias da Terra.

USO/Getty Images

Aprendi com o povo Wajãpi que rochas, plantas e animais carregam marcas de tempos antigos. Às vezes, como no caso dos sulcos nas rochas, as marcas do passado dos Wajãpi correspondem àquelas que aprendi com meu treinamento arqueológico. Em outros casos, como no comportamento da onça-pintada, as marcas dos Wajãpi estão além da minha caixa de ferramentas arqueológicas.

UMA COLABORAÇÃO FRUTÍFERA

À medida que criamos espaço para compartilhar entendimentos ao longo dos anos, começamos a preencher a lacuna entre nossos diferentes conjuntos de conhecimento. Juntos, registramos cada marca do passado como uma parte relevante da história da Terra Indígena Wajãpi.
Pesquisadores acadêmicos usufruem dos novos dados em uma área nunca antes pesquisada por pessoas arqueólogas com formação universitária. Mas este trabalho também produz conhecimento relevante para o povo Wajãpi: eu compartilho com eles informações sobre as leis federais relacionadas ao patrimônio cultural e à proteção ambiental. Documentamos seus lugares e histórias por meio de mapeamento com GPS, gravações de áudio, desenhos e fotografias. Essas informações são comunicadas por meio de mapas, livretos e reuniões públicas.

Abordamos as marcas materiais a partir de origens distintas; muitas vezes nos entendemos mal. No entanto, a incapacidade de compreender os significados esperados alimenta nossas conversas e colaboração. Embora tenhamos diferentes suposições sobre o passado, compartilhamos um interesse comum em contar histórias baseadas em objetos, lugares e seres como a onça-pintada.

Lado a lado, uma fila de cinco pessoas sem camisa, usando longas tangas vermelhas e sandálias, caminham enquanto sopram em longos instrumentos de bambu.

Pesquisadores Wajãpi comemoram o fim de uma temporada de trabalho de campo arqueológico com uma festa tradicional na aldeia Karapijuty.

Mariana Petry Cabral

Os povos indígenas no Brasil sofreram e continuam enfrentando processos violentos de negação, silenciamento e assassinato. Foi somente em 2008 que a história indígena se tornou um componente curricular oficial para o ensino fundamental e médio no Brasil. Suprimidas da identidade nacional, as perspectivas indígenas dificilmente eram ouvidas fora das aldeias antes da mudança curricular e de outros esforços para aumentar a conscientização.

A pesquisa colaborativa pode ajudar os povos indígenas a documentar seu passado, ampliar suas vozes atuais e garantir sua soberania no futuro.

A woman with wavy hair smiles with a closed mouth.

Mariana Petry Cabral é uma arqueóloga cuja pesquisa foca em arqueologias indígenas, práticas colaborativas e produção de conhecimento. Ela é professora de arqueologia na Universidade Federal de Minas Gerais, no Brasil, e foi Professora Visitante em 2023 no Joukowsky Institute for Archaeology and the Ancient World da Brown University. Siga-a no Instagram @marianapetrycabral.

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